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Política, vida e pensamento (Artigo)

Política, Vida e Pensamento
por Luiz Fuganti

Duas coisas estão ausentes da política atual que pretende governar nossas vidas e nossas sociedades: pensamento múltiplo e vida intensa. Pensar intensificando um viver ativo e viver ativando as virtudes da diversidade humana e da natureza. Essa dupla ausência é um fato banal que domina e regula por baixo nosso cotidiano.

A política torna-se assim prática e razão de um poder sem pensamento.

Esse fato banalizante não é por isso menos curioso ou preocupante, pois corrompe as políticas que pretendem, ao menos em tese, representar a vida livre. Ele revela uma dupla tendência, com sentidos em aparência contrários: 1) uma relação coagida de forças que, às escuras, rebaixa e avilta a vida; 2) e, sobre sua face iluminada, uma relação redentora de domínio, promessa do ‘vencer na vida’ ou ascensão ao poder. Separação que faz a vida falecer como intensidade e renascer como reativa, se desintensificar e se intencionalizar. Apartando-se do que pode e ligando-se a um ideal de poder que resgata, a vida torna-se finalmente desejo de poder. Dá-se ao mesmo tempo a dupla operação: enquanto a vida é subtraída da sua realidade virtual, é seduzida e cooptada por esse modo perverso de desejar e exercer o domínio. Eis como assassinamos o presente.

Por que os modelos e as práticas políticas que dominam nossas sociedades não só não questionam ou buscam superar as relações de rebaixamento dos seres humanos, como as implementam como condição de seu exercício e continuação? Esses modelos e práticas, ao contrário, sustentam e investem relações de coerção e captura entre dominados e dominantes, governados e governantes, até o limite que os separa tornar-se interior, subjetivo, espiritual. Não mais um limite transcendente da lei que proíbe, nem mesmo um limite transcendental da norma que obriga, mas um imperativo do desejo imanente que se impõe, onde finalmente se adere a uma economia política do controle que se introjeta como dicotomia em nós: uma economia política do poder. O mais econômico dos governos é aquele que torna secundário os controles externos.Tornamo-nos finalmente escravos de nós mesmos.

Nossas práticas políticas dominantes – ao silenciarem e esfumarem essa dicotomia -, fraudam a condição de autonomia das diferenças, produzem tipos cooptados e adeptos fundamentalistas desse modo de viver. Ao nos fazermos cúmplices, não apenas queremos o poder por todos os meios, liberais ou não, mas nos tornamos replicantes eufóricos desse modo mutilado de desejar. E é enquanto reprodutores que inevitavelmente acabamos por constituir uma sociedade de delatores, procuradores, advogados, juízes que gozam ao enquadrar e criminalizar tudo o que dela difere. Tudo isso viria expandir e inflacionar a crença nessa bizarra idéia de liberdade, a de que somos os empreendedores de nós mesmos como indivíduos atômicos. Mas nessa condição não passamos de escravos. Prisioneiros dessa condição, sonhamos desejar livremente essa vida. Mas essa liberdade é de um tipo tal que só pode ser imaginada do ponto de vista de uma cabeça capturada e de um corpo esvaziado (da experiência da própria duração).

O que se tem de aparentemente melhor, ou menos pior, para as sociedades atuais, o que chamamos de regimes ou Estados democráticos de direito, implica uma sistematização tal da representação dos desejos das populações que constituem uma nação, com suas instâncias, instituições, mecanismos e dispositivos, que vêm a se confundir com uma camada de BUROCRACIA (poder jurídico/administrativo fundado na ordem formal ou na lei de Estado através de uma carta magna, a Constituição) que inviabiliza a contribuição real e a participação direta nas decisões e ações que determinam os destinos de nossas vidas em sociedade. A democracia, tal como a entendemos na contemporaneidade, é um conjunto burocrático de procedimentos de poder. Quer dar-nos a impressão que temos escolha, proclama aos quatro ventos nosso ‘inalienável’ direito de livre-escolher os rumos do nosso destino em sociedade.

Essa ORDEM FORMAL interpõe-se como uma camada impermeável que sobrecodifica as relações de sociabilidade, separando-as de sua apresentação direta e imediata através de uma superfície comum de acontecimento. Sequestra-se assim, de fato, a autonomia direta, impondo uma falsa ‘autonomia’ a um só tempo rendida à moral privada – que captura as singularidades -, e tutelada pela autoridade pública – que captura o comum. Então a política quando é confundida com o exercício autorizado que nos manipula como peças de uma máquina social, opera e controla as ligações e cortes das cadeias de mediações, torna-se poder de coerção, cooptação e coesão do tecido social. Desse modo impõe e até distribui hierarquicamente um regime de empoderamento através da disponibilidade integral do vivo à voracidade ilimitada de um ‘desejo de interesse e de direito’, vontade de poder apropriar-se e criar um mundo à imagem e semelhança de uma ficção soberana. Vivemos em regimes ilegítimos de autoridade, onde práticas escusas se apoiam em um conjunto convencional de regras para melhor esconder o que visam necessariamente: o arbítrio desregrado de um empoderamento crescente de quem não se sustenta sem tomar de assalto e parasitar as vidas alheias através de um insaciável falso infinito de desejo.

Precisamos, nesse sentido, operar então uma dupla desconstrução, expressa nos próprios usos dos vocábulos políticos e nos modos e condições de enunciação desses vocábulos. Precisamos focar na manipulação das linguagens, na criação e reprodução das narrativas, na apropriação dos discursos políticos; nos modos de se falar e recortar o real, de se escrever e formalizar o direito, de se pensar a política. Precisamos reconstruir ou mesmo criar conceitos. Reinventar modos de sentir – libertar-se dos regimes de sensibilidade e de sentimentos reativos -, de pensar e de falar – libertar-se dos regimes de julgamento e de linguagem -, e de agir em devir, – e não para o progresso -, no campo da política, para que precisamente a própria vida, em suas modalidades ativas e intensivas, assim como o pensamento, em suas modalidades afirmativas e criativas, voltem a ser contemplados em nossos modos de existir, como presenças intempestivas contrapondo-se às omissões e ausências de nosso tempo presente, por um tempo por vir.

Desejamos contribuir desse modo para a emergência de um novo mapeamento, não apenas dos vocábulos da linguagem já existentes, mas de um novo modo de traçar fronteiras móveis, sentidos de acontecimentos para experimentações de potências singulares e construções de zonas comuns de autonomia, de outros governos de si e de novas maneiras de se compor e auto-gerir em comunidades. Portanto uma nova cartografia das maneiras de pensar e orientar nossas práticas de nos governar a nós mesmos. E por isso confeccionar conceitos-ferramentas para usos dessas práticas micro-políticas do desejo. Para nos fazermos fortes e dizer sim aos acontecimentos de variação e aumento da potência de existir. Por uma política da vida intensa, criativa e liberadora.