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Curso de Introdução à Esquizoanálise em 2022 (Transcrição – aula 4)

10/07/2022

Corpo sem órgãos, depressão e outras doenças da alma

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Olá, gente! Muito boa noite. Boa noite a todos, a todas. Que bom, estamos aqui de novo para mais um encontro. Nosso quarto encontro, nossa quarta aula desse curso de Introdução à Esquizoanálise que programamos para cinco encontros. Domingo próximo, dia 17 de julho, faremos nosso quinto e último encontro, de encerramento. É sempre uma alegria muito grande e hoje nós vamos dar sequência àquilo que havíamos nos planejado.

Para quem não me conhece, então, vou me apresentar rapidamente, de modo sucinto. Eu sou Luiz Fuganti da Escola Nômade de Filosofia, e nós vimos aqui realizando já uma série de encontros anuais, sempre nos meses de junho e julho. Fazemos esses encontros de introdução para contagiar e produzir essa vontade de mergulhar em uma outra e inédita maneira de existir. Portanto, uma nova maneira de sentir, de agir, de pensar. Nós não nos cansamos, muito ao contrário, nos alegramos cada vez mais em ver, em sentir, em pensar, em praticar essa maneira de viver, e perceber que isso se espalha cada vez mais, pela necessidade e pela urgência. Pela necessidade de fazermos a desconstrução disso que virou uma espécie de prisão humana, uma prisão semiótica na qual nós humanos nos enfiamos. Construímos essa prisão e entramos de bom grado nela. Então, a necessidade de desconstruir isso que nos tornamos e necessidade essa por constatarmos que justamente o que nos tornamos nos impede de ver com nitidez, de pensar de modo afirmativo, de agir realmente de modo ativo, de existir de modo a criar as próprias condições de existência, sem ficar preso a um ideal, sem ter vontade de idealizar.

Essa necessidade e a urgência, como eu digo sempre, porque a vida se dá no presente. O presente é agora. Então aqui e agora nós buscamos investir nessa desconstrução de nós mesmo, não só para nos desconstruirmos, mas, muito ao contrário, para encontrarmos novamente aquilo que nos constitui. Nós somos seres que existimos não por favor, não por alguma delegação, não por algum crédito concedido de fora de nós mesmos, mas por forças imanentes que fazem parte da própria natureza. Então cabe a nós, à medida em que fomos nos separando dessas forças, reencontrar essas forças.

E temos uma tarefa crítica de desconstrução de nós mesmos, exatamente para que possamos reencontrar essas forças e chegar a dizer, finalmente e novamente, “ao desejo e à vida nada faltam”.

E o tema-problema do nosso encontro de hoje é um desafio ainda maior, porque nós somos os primeiros a afirmar que o depressivo, esse tema da depressão geralmente é encarado como alguém sem desejo, com zero de desejo. Zero de desejo e também zero de vontade. O depressivo seria alguém destituído de toda força e aquele que testemunharia o resultado final de que, no fundo, o desejo é constituído pela falta, mas, no caso, em um circuito malogrado. E nós estamos aqui para descontruir esse mal-entendido e abrir um novo horizonte que afirma justamente o contrário. Talvez o depressivo condense nele mesmo um grande estado desejante — ainda que um desejo capturado, mas o desejo está todo ali.

Nós fizemos inicialmente uma incursão, uma introdução ao curso, na primeira aula, falando do Eu como zona de passagem e a demolição do sujeito. O Eu como zona de passagem é uma reconquista de uma espécie de código de linguagem, porque o Eu não passa, na verdade, de um pedaço de exterioridade, restituindo a esse ser da linguagem a sua zona de passagem como que um modo que a vida inventa para acontecer, dobrando-se através da própria linguagem. Uma dobra que, mantendo o Eu na passagem, não se interioriza em um buraco que depois precisaria de um sujeito para se estruturar. Na medida em que esse sujeito se põe no lugar desse buraco a partir de um Eu interiorizado, do ponto de vista crítico que nós aqui colocamos, é preciso que realizemos a sua demolição.  Foi o nosso primeiro-tema problema.

E, claro, na medida mesma que o Eu e o sujeito têm um papel preponderante nas nossas formações sociais atuais, essas que têm em torno de 300 anos de idade e que funcionam com um preposto de poder em nós, para que possamos reproduzir o poder, a autoridade e o modo de regulação social, para que demos a vigilância e o controle a partir das nossas próprias forças ou do nosso desejo capturado. Eu tenho afirmado aqui que essa é a mais sofisticada forma de economia política de um desejo controlado. Controlar o desejo a partir de si mesmo evitaria em grande parte a necessidade das câmeras exteriores, da vigilância exterior. A vigilância interna é a mais eficaz, mas não só uma vigilância, como também o exercício de um poder que se reproduz através de nós.

 

APAGAR Nossas formações sociais atuais, que têm em torno de 300 anos de idade, funcionam com um preposto de poder em nós, para que possamos reproduzir o poder, a autoridade e o modo de regulação social, para que demos a vigilância e o controle a partir das nossas próprias forças ou do nosso desejo capturado. Essa é a mais sofisticada forma de economia política de um desejo controlado. Controlar o desejo a partir de si mesmo evitaria em grande parte a necessidade das câmeras exteriores, da vigilância exterior. A vigilância interna é a mais eficaz, mas não só uma vigilância, como também o exercício de um poder que se reproduz através de nós.

 

Só que a história desse preposto em nós é também a história de uma bizarra aventura, porque através desse preposto, do empoderamento de um Eu, de uma interioridade artificial e fraudulenta, é que nós vamos recalcando, submetendo, solapando, sabotando o “dentro” de nós mesmos que difere do interior. Um dentro feito de multiplicidades, mas de multiplicidades de uma ordem do potencial. Uma multiplicidade que tem realidade própria e que precisa também encontrar suas vias de efetuação no acontecimento de si mesmas. E, na medida em que não só o dentro é sabotado e mascarado (assim como o fora também é), a partir de fora uma máquina social vai se incidir no investimento do nosso desejo. Uma máquina social que vai entrar em coordenação com a nossa interioridade, com os nossos processos de subjetivação e assujeitamento do desejo. E isso fatalmente leva a uma depressão de nós mesmos. Uma depressão da zona potencial de nós mesmos. Mas uma depressão de uma ordem tal que se inventa uma espécie de desconexão com a realidade mais sutil que nos constitui. A desconexão com a nossa realidade virtual. Uma realidade virtual que é tanto mais real por ser virtual, por ser potencial, e que difere em natureza do que nós chamamos ou acreditamos ser o possível. É preciso fazer essa desconstrução.

Nós, na segunda aula, falamos do inconsciente maquínico. O inconsciente maquínico, o modo como o inconsciente e o desejo produzem não fantasmas ou cenas teatrais de uma representação, mas realidade. Produzem realidade, fabricam diferença, produzem e si mesmos, e isso está acoplado, na verdade, a uma zona de passagem que nós denominamos aqui de “superfície” ou “plano comum dos encontros”. Então há uma maneira de viver que, ao se acoplar a essa zona de passagem, pode tomar a própria produção da realidade, a criação de valor e, portanto, também aí inclusas a produção e criação de si mesmo nas próprias mãos. Isso nós falamos no nosso segundo encontro.

No nosso terceiro encontro, nós deixamos clara a diferença, fizemos a diferença entre circuito intensivo do desejo, que daria em uma vertente esquizorevolucionária; e circuito intencional do desejo, um círculo vicioso em que o desejo cai, à medida em que é capturado e separado da própria potência, e que investe em um modo paranoico-fascista de existir, implicando o desejo de um centro de soberania. Nós fizemos a distinção clara entre esses dois circuitos de desejo. Circuito intensivo de desejo, que na verdade nos preenche realmente e produz realidade, este estaria acoplado a isso que, a partir da própria Esquizoanálise e dos conceitos criados por Deleuze e Guattari, é denominado de inconsciente maquínico. Então, essa inconsciente maquínico é um inconsciente-fábrica, assim como a natureza naturante espinozista, que nos põe em contato novamente com a potência de criar realidade, de inventar novas maneiras de existir e de fabricar a si mesma nessa relação.

Depois, clarificamos a ligação desses circuitos, tanto o círculo virtuoso do desejo intensivo quanto o círculo vicioso do desejo intencional, e o campo político dos afetos. Então, há um uso dos afetos, há um bom e um mau uso do bem e do mal que nos acontece, e que nos conduz de modo completamente diverso, criando um destino radicalmente distinto um do outro, à medida em que ou investimos o desejo intencional em seu círculo vicioso, ou recobramos o nosso modo intensivo de desejar, criando para nós mesmos não apenas um corpo orgânico, um corpo efetuado na concretização da existência, um corpo organizado, um corpo eficiente, mas um corpo antes da forma, um corpo de intensidades. Um corpo de potência que, na linguagem de Deleuze e Guattari, já no seu Anti-Édipo, tomando emprestados uma visão, uma prática e um afeto artaudiano, de Antonin Artaud, denominaram “corpo sem órgãos”. Um corpo sem órgãos como um corpo de potência. Eu denomino corpo de potência porque é um corpo que se efetua e se preenche daquilo que acontece a ele e, à medida em que é um corpo de potência e que faz as conexões com o acontecimento que o efetua, nessa mesma medida ele se preenche de intensidades.

Esse corpo de potência seria um corpo pleno de potência ou, ainda melhor, um corpo pleno de intensidades. À medida em que esse corpo se efetua, ele se preenche de intensidades, mais do que de dores e prazeres, mais do que de formas de eficiência, mais do de que formas de competência, mais do que de formas de responsabilidade moral. Ele se preenche de intensidade de movimento, de intensidade de duração, de intensidade afetiva. É um corpo pleno de intensidade.

E hoje nós vamos falar desse corpo sem órgãos, só que o corpo sem órgãos… o que acontece com o corpo sem órgãos à medida em que ele é, de alguma maneira, capturado? Nosso corpo de potência é separado do seu processo de desejo imanente. O desejo separado da sua potência é, de alguma maneira, capturado e vai investir em um buraco de si mesmo, em uma zona fixa, um estado interiorizado a partir de uma separação.

Nós vimos, no nosso último encontro, como o desejo, no seu campo de imanência, no seu plano potencial, se separa desse campo de imanência ou dessa própria potência. O desejo se separa da potência, em primeiro lugar, por um mau uso que fazemos daquilo que nos acontece. E isso constitui aquilo que denominamos como nossa cumplicidade com as capturas do nosso desejo, do nosso corpo e do nosso pensamento, mas, sobretudo, com um sobreinvestimento da própria máquina social que é constituída pelo conjunto de desejos e crenças, formando a sociedade em que vivemos.

Então, essa formação social também investe o nosso desejo já decaído. Uma vez que aquele desejo que faz um mau uso daquilo que lhe acontece, ela sobreinveste essa decadência, prometendo ao desejo um empoderamento, uma salvação, um reconhecimento, uma autorização e um direito ao gozo. Promete até ao desejo que ele retome a sua individualidade, a sua pessoalidade e fale, enfim, em nome próprio. Nós vimos isso, de alguma maneira, inclusive, como promessa das teorias e práticas psicoterapêuticas, quando essas teorias e práticas visam integrar novamente aquele ser que se separa dessa integração social, que deixa de se sentir pertencente a esse processo de socialização e então deveria novamente ser rearranjado para que aderisse novamente, e também fosse aceito novamente, pelo próprio espelhamento que essa máquina social produz, pelo seu plano de reconhecimento.

Isso tudo, então, tem uma origem.  E nós vamos focar nesse momento. Onde isso se origina e aonde isso pode dar, envolvendo principalmente esse “cardápio” de doenças mentais e afetivas que incidem sobre uma parte do corpo social. A partir daí, vamos não diagnosticar — porque, a nosso ver, o diagnóstico é um modo de enquadrar, de isolar, de atribuir individualmente, ou pessoalmente, ou até a um grupo familiar uma doença que, na verdade, é produzida socialmente e por uma época. Não há, a nosso ver, na depressão, assim como em outras doenças, um problema neurológico em sua origem, muito menos genético. Não há nem um problema genético, nem um problema neurológico que seriam causas de um distúrbio ou transtorno como a depressão.

A nossa tese é radicalmente contrastante a esse preconceito, que para nós é um grande mal-entendido, e não apenas um mal-entendido que se alimenta de uma ingenuidade, de um imaginário do pensamento, mas que tem uma razão de ser que coincide com a necessidade de atribuir a cada indivíduo o seu autopoliciamento ou autocontrole. E, à medida em que um indivíduo, um sujeito, uma pessoa não pode mais exercer esse autocontrole e disponibilizar a sua energia, o seu campo potencial, as suas forças para que invista aquilo que dela é demandado, então há uma espécie de intervenção. E uma intervenção por todos os braços do Estado, dessa máquina social, incluindo, principalmente, as teorias e práticas psíquicas que vão investir, assim como toda a indústria farmacêutica que acompanha esses processos.

No nosso último encontro — só para acabar aqui o resumo ­—, nós vamos falar de um corpo de potência não mais esburacado e esvaziado, para usar aqui a linguagem de Deleuze e Guattari, mas de um corpo pleno de potência, um corpo pleno de intensidades, um corpo pleno, sem órgãos, que faz do nosso modo de existir uma potência de criar valor. Então nós vamos gerar esse contraste, vamos focar nesse aspecto afirmativo no nosso último encontro. Falar sobre qual é a grande saída para essas capturas.

Hoje nós vamos tratar desse corpo sem órgãos que perde o seu campo de imanência, o corpo de potência cujo desejo perde o campo de imanência, se destaca ou se separa de si mesmo a partir de um acontecido que toma o lugar da potência de acontecer. O acontecido que toma o lugar da potência de acontecer — e aí eu pediria a vocês, para eu não precisar ficar me repetindo: aqueles que ainda não viram, ou não viram suficientemente os encontros anteriores, que revejam esses encontros, para que eu possa já partir de um ponto que aprofundemos ainda mais e aproveitemos melhor esses nossos encontros aqui. Então eu estou aqui pressupondo que vocês assistiram às aulas anteriores e vou partir então desse desejo separado do que pode, a partir de um acontecido que tomou o lugar da potência de acontecer.

Esse acontecido que tomou o lugar da potência de acontecer, nós o designamos como um limite interiorizado. É o começo do buraco. É o começo daquilo que muitos de nós chamamos de alma. A alma começa em um buraco. Na verdade, essa alma é uma imagem residual, resultante de um mau encontro ou de um encontro suficientemente determinante, com uma força que nos determina de fora e nos fixa a um modo de reagir, de sentir e de pensar. E essa fixação, que é uma posição passiva ou passional, também inaugura um modo inadequado de desejar, qual seja, um modo que deseja porque a esse desejo falta um objeto, porque a esse desejo falta uma matéria, uma materialidade, seja um objeto material, seja um objeto ideal; seja uma materialidade corporal; seja uma materialidade ideal. Faltaria a esse sujeito algo.

E, na medida mesma em que nós desenvolvemos estratégias de sobrevivência a partir da nossa vida separada do que pode, nós investimos em um imaginário que se torna também o plano do possível. Isso é muito importante de marcar. Nós investimos o possível. Nós desejamos de uma maneira tal que vamos fazer o possível para encontrar a nossa verdade, a verdade do nosso desejo, aquilo que vai preencher o nosso corpo, o nosso pensamento, o nosso campo afetivo. Nós vamos nos esforçar para seguir na existência. De que maneira? A partir daquilo que nos resta. A partir da própria sobrevivência. A partir do momento em que uma vida separada do que pode sobrevive aos maus encontros e, na medida também em que os encontros vão se fazendo estados vividos, esses estados vividos, também interiorizados, ao mesmo tempo que vividos em um acontecimento, se interiorizam em um acontecido, se tornando passado, e esses estados vividos vão se empilhando em nós. Só que esses estados vividos têm conteúdos emocionais, eles têm conteúdos afetivos, e eles derivam de uma negação ou de uma nadificação dos devires, ou da zona de acontecimento, ou daquilo que nos ligaria a um horizonte criador. Eles desqualificam esse horizonte criador porque justamente a partir do horizonte criador tivemos a experiência de nos nadificar, de nos rebaixar pelos maus encontros que fizemos, pelo mau uso que fizemos daquilo que nos aconteceu, que nos acontece, e seguimos fazendo.Esses restos em nós, esses estados que nos tornamos, essas imagens de nós mesmos que vão nos reconfigurando para nós mesmos, vão também liberando uma pontinha de sucesso, um gostinho de sucesso que está no fato de termos sobrevivido a esses maus encontros.

Essa sobrevivência faz com que percebamos em nós algo de nós mesmos que deu certo nesse processo. Uma forma vivida da qual deve ser abstraído aquilo que deu errado, aquilo que foi imperfeito; mas, naquilo que deu certo, ainda há uma maneira que pode ser aprimorada a partir de sua idealização. Nós, a partir daí, começamos a investir em uma vontade de ideal. A vontade de ideal nasce justamente de um desejo separado da sua potência, um desejo separado do seu campo potencial, um desejo separado à medida em que se colou ao acontecido e reduziu a sua potência de acontecer a esse acontecido. Esse desejo separado é o começo do esburacamento do corpo sem órgãos. O corpo sem órgãos vai se preenchendo dessas ausências, dessas reduções.

O esburacamento nada mais é do que um processo de redução do desejo, da potência de acontecer aos seus acontecidos. E o nosso corpo sem órgãos, em vez de se preencher de intensidades, vai se preenchendo de ausências, de frustrações, de pequenos desgostos, de pequenas mortes, de desprazeres que fazem com que, de alguma maneira, sigamos nos esforçando por melhorar a nossa existência e a dos nossos próximos, nos esforçando para que não apenas sobrevivamos, mas conquistemos um sucesso. Vamos nos esforçar muito, idealizando para encontrar as maneiras mais adequadas, as maneiras mais verdadeiras, as maneiras mais resgatadoras, as maneiras mais redentoras. E nós idealizamos e idealizamos, e desejamos essa verdade do ideal.

Quanto mais desejamos a verdade do ideal, mais investimos nessa idealidade, mais excogitamos modelos que vão extrair da experiência vivida uma pureza, e mais investiremos nessa pureza. Desenvolveremos uma mania de ideal, uma mania de altura, uma mania de elevação. Ainda mais que, no ideal, encontramos um modelo que pode comparar e medir a distância que estamos de nós mesmos, a distância entre uma vida de fracasso e uma vida de sucesso. Uma vida decaída, malograda, danada, e uma vida salva. Nós precisamos idealizar, precisamos encontrar essa verdade, então nós vamos desenvolver essa vontade de ideal, essa vontade de verdade.

Como diria Nietzsche, muito mais importante do que o ideal, ou mais nocivo, talvez, o que realmente interessa não é tanto o ideal ou a crítica ao ideal, mas a vontade de ideal. Não tanto a verdade, mas a vontade de verdade. O que em nós faz desejar a verdade? O que em nós faz desejar o ideal? Esse processo de idealização, essa mania de elevação, essa mania de altura — inclusive porque nós, de modo equivocado e torto, separados do que podemos, da nossa potência de agir, de sentir e de pensar, presos à imaginação, incapazes de entendimento e de criar visões claras, lentes polidas, pensamentos afirmativos; nós nos esforçamos para que esse plano ideal seja coincidente com um plano de valores que constitui o possível bem. Todo o bem e o leque ou cardápio de possíveis que nos resgatariam, que nos salvariam, que nos fariam pertencer a um modo verdadeiro de existir.

Aqui está a origem do primeiro movimento que expõe uma mania ou uma vontade de ideal que, na verdade, vai fazer uma colheita inversa. Quanto mais se idealiza, quanto mais se investe na verdade, quanto mais se investe em uma forma de existir que nos salvaria, que nos daria a felicidade, que nos daria poder ou potência — porque aqui nem sabemos a diferença entre poder e potência —, ou direito ao gozo, acabamos por nos decepcionar. Quanto mais investimos, mais colhemos frustrações, desgostos, desprazeres.

Esse movimento tem um duplo efeito. É como no imaginário platônico, na obra platônica. Platão, quando investe o campo ideal dos modelos, a mania platônica de idealizar, vai simplesmente afirmar que esse ideal é imparticipável, que não há acesso a esse ideal, esse ideal é uma espécie de extra-ser, estaria além do ser, além do existente, além da nossa realidade. Seria uma idealidade inalcançável, imparticipável, mas daria a nós, piedosamente, a possibilidade de participar do seu modelo, extrair do seu modelo, das relações internas, intrínsecas a esse modelo, o paradigma para nossa existência. Ele se formaria como um significante dominante em relação ao nosso desejo, como o horizonte principal do nosso desejo, o que seria mais importante, o valor maior. O valor maior porque ele jamais deixaria de ser essa realidade ideal, uma vez que não é corrompido pelos devires, pelo tempo, pelo movimento, pelas intensidades, pelas variações intensivas do nosso desejo.

Só que, ao mesmo tempo em que ele libera um modelo para que nos referenciemos a ele, nós nos tornamos algo nessa relação. Nós nos tornamos uma imagem desse modelo, ou aquilo que Platão vai denominar como “cópia”. Uma cópia com semelhança a esse modelo. Uma cópia ou uma imagem ícone. Uma imagem ícone que, por mínima semelhança que tenha ao modelo, ainda mantém essa imagem em um bom caminho. O problema começa quando essa imagem perde qualquer semelhança intrínseca ao modelo e começa a investir em uma semelhança aparente, a partir da relação com os corpos, com o tempo, com o movimento. E aí Platão vai chamar isso e “imagem simulacro”. O simulacro vai ser um engodo, vai ser a perversão do desejo em relação ao ser. O desejo vai deixar de investir a verdade e o ideal, e vai se relacionar com outros corpos, outros devires, outras realidades efêmeras que, na verdade, são ilusórias.

Aqui começaria a perdição para o modo platônico de ser. Mas, na verdade, em todo esse movimento platônico, socrático (pois isso está inspirado em Sócrates. A inspiração vem de Sócrates, o fundamento vem de Platão — e depois há uma construção aristotélica em cima disso), há todo um movimento maníaco depressivo do desejo. A mania de ideal a partir do próprio esburacamento do desejo. O desejo que não é mais um desejo intensivo, mas é um desejo intencional a partir da sua separação do que ele pode, investindo um objeto — por mais que não seja material, mas seja um ideal, justamente por isso mesmo não vai haver nada na realidade que vá preenchê-lo. Como diz aquele enunciado de Gilles Deleuze, em sua obra Lógica do sentido, escrita três anos antes do lançamento do Anti-Édipo, “as boas intenções serão forçosamente punidas”. Afinal, a boa intenção implica uma forma do bem, uma forma exterior, hegemônica, eminente e transcendente do bem, que serve como uma referência ao desejo. E por isso daria a “boa” direção do desejo, a sua “boa” intenção. Essa boa intenção jamais vai ser preenchida por um conteúdo real, por isso a frustração já está inoculada no coração do desejo. Essa frustração é necessária por esse mau jeito, por esse modo de desejar.

Mas isso necessariamente dá na depressão? Isso vai investindo em graus de depressão. Há uma parte de nós mesmos que vai se deprimindo, na mesma medida em que essa semelhança se mostra inadequada ou insuficiente em relação ao modelo, em relação ao ideal, em relação ao que o nosso desejo quer. À medida em que nosso desejo não se satisfaz e não há como ele se satisfazer nesse mau jeito de desejar, a nossa realidade vai decaindo ao mesmo tempo. Nós vamos formando uma imagem de nós mesmos sempre mais fixada, mais condensada, mais cristalizada, ao ponto de interpretarmos a nós mesmos como substâncias e não como potência de acontecer, não como modos de afetar e sermos afetados. Como uma substancialidade, uma alma, e por isso, se seguimos nessa toada, vamos acreditar também nas doenças da alma, que haveria doenças próprias da alma. E é isso o que queremos desfazer aqui, esse mal-entendido.

Seguindo. Nós temos aqui um duplo movimento. Um movimento de idealização a partir da vida separada do que pode, de idealização e de projeção objetiva, ideal; e um movimento de introjeção, de interiorização. O que introjetamos? Introjetamos um suposto grau de semelhança a esse ideal, a essa verdade. E essa semelhança vai formando essa imagem de nós mesmo, que vamos desejar que coincida com a nossa essência. E nós vamos colocar essas imagens no lugar da nossa potência de acontecer.

E depois, será com essas imagens que iremos construir uma consciência e um sujeito. Sujeito de conhecimento, sujeito moral, e também um indivíduo físico eficiente. Um sujeito moral dos afetos ou do desejo, que coloca essa moral do dever-ser no lugar da potência ética de acontecer; um sujeito competente do conhecimento, que coloca o conhecimento especulativo desse pensamento separado, que não passa de imaginação e que nega o devir e o acontecimento em sua imediaticidade, e nadifica, portanto, o acontecimento, e coloca isso no lugar da nossa potência de pensar afirmativamente o devir, um devir ativo, autossustentável, que se diferencia a partir dos encontros imediatos e das potências com as potências; e um indivíduo eficiente com seus movimentos organizados, que colocam essa organização dos movimentos no lugar do seu corpo sem órgãos.

Esse processo, esse duplo movimento de projeção ideal e de interiorização subjetiva vai fazendo com que nos esforcemos por alargar as possibilidades. Esse investimento no ideal, essa mania de altura que nós temos, dessa altura transcendente que ultrapassaria a existência, vai criando então o sonho do possível, as saídas para uma vida que está sempre sendo ameaçada, que está sempre se preenchendo de paixões tristes, fazendo maus encontros. E quanto mais maus encontros ela tem, mais ela se esforça por encontrar uma saída verdadeira, uma saída autêntica. Só que, ao mesmo tempo, mesmo essa potência separada do seu desejo, esse desejo separado da sua potência, à medida em que esse desejo se esforça ao máximo para atingir essa verdade, ele tem um grau de integridade, e quanto mais ele se esforça por idealizar uma saída, mais ele se decepciona.

E onde mora a ilusão? Acho que é o momento de fazermos uma questão. Onde mora a ilusão? Nós acreditamos que o possível, ou o campo possibilidades, é um campo de liberdade. Quanto mais imaginamos que uma vida tem esta ou aquela possibilidade, ou ela tem mais possibilidades do que outra vida, ou do que ela tinha no passado, mais ela acredita que seu futuro está se abrindo. E mesmo que esse futuro esteja se fechando (porque as possibilidades vão também rareando, ou aquelas que eram possibilidades se tornam decepções), mesmo aí nós continuamos acreditando que há uma saída, que há uma possibilidade.

E eu digo o seguinte: essas possibilidades, esse plano do possível, na verdade, é um possível já dado. Se é um possível já dado, não há nenhuma possibilidade de se inventar ou de se criar realidade. Afinal, o possível é tido como algo que é incriado. Ele é dado como possibilidade, mas ele já está aí. O que falta talvez seja descobri-lo. Descobrir o possível, mas não criar o possível. Não passa na cabeça de nenhum ser separado do que pode que o possível pode e deve, é necessário que ele seja criado. E aí seria, de fato, um plano de liberdade, um plano de abertura, um plano de criação de tempo e de direito ao futuro. Mas, na medida mesma que esse futuro, esse horizonte desse plano do possível está dado, não há como ele não se tornar uma sequência, um encadeamento de frustrações. Ao fim e ao cabo, nosso destino será vivenciar um grande buraco e atingir uma grande depressão. Depressão que Nietzsche, ao seu modo, em sua obra, chamava de “o grande perigo”, que é um grande cansaço que vamos tendo da vida.

É esse cansaço que faz com que o movimento de desejo, que desejava antes o ideal, que desejava antes a verdade, e que Nietzsche vai dizer que não passa de uma ficção, que não passa de uma ilusão, uma mentira — a mentira do ideal, ainda que muitos vivam isso com muito esforço, querendo realmente encontrar uma verdade aí, essa verdade vai se revelar como uma mentira. Esse movimento de idealização ainda era uma vontade, ainda era um desejo (aqui não é necessário distinguirmos vontade e desejo, podemos pôr no mesmo plano, não faz diferença colocarmos desse modo), ainda era uma vontade de alguma coisa, mesmo que essa alguma coisa fosse um nada, fosse uma ficção.

Nietzsche diz que nesse movimento todo, se esses valores coincidem com uma realidade divina, ou seja, eu tenho uma vontade de ideal, uma vontade de formas divinas, uma vontade de salvação, uma vontade de valores divinos; depois isso vai degringolando, digamos assim, ou vai decaindo para uma estatura humana, e não mais divina, como é o caso das nossas sociedades atuais, que se ligam a valores humanos e não mais divinos. Os valores humanos são dominantes, pelo menos. Por exemplo, a felicidade no lugar da salvação, o progresso no lugar da eternidade, a forma-homem no lugar da forma-deus.

Isso ainda é uma vontade? Ainda é uma vontade de alguma coisa, mesmo que essa forma-homem, essa felicidade, esse progresso sejam ilusórios? Mas chega um momento em que esse movimento, de frustração em frustração, de desprazer em desprazer, de desgosto em desgosto, de não sentir nenhum gosto por nenhum tipo de relação ou de acontecimento, ele cai em uma grande depressão, um grande cansaço. E esse momento, seguindo a citação da obra de Nietzsche, vai ser identificado como “o momento de Schopenhauer”. É aquele momento em que se diz “não vale a pena desejar”. O objeto do desejo é uma ilusão. Nem valores divinos, nem valores humanos, nem valores naturais ou naturistas, melhor mesmo é nada desejar. Nada de desejo. É o quarto momento em uma escala de quedas de um guerreiro. O primeiro é o medo; o segundo é uma clareza — claro, uma falsa clareza; o terceiro é o poder ou empoderamento, que vai desembocar nessa realidade cruel que é esse grande cansaço.

O grande cansaço, então, coincide com uma desistência, com um nada de desejo. Nada vale a pena. Nada faz sentido. Não importa o que eu fizer na vida, nada vai fazer diferença. Minha vida não faz diferença. Esse momento é fruto, é decorrência desse mau jeito, da insistência do mau jeito, do modo intencional de desejar, do círculo vicioso do modo intencional que nós vimos de modo esquemático no nosso terceiro encontro, anterior a este.

Essa desistência significa, na verdade, que não há desejo algum? Na verdade, não. É apenas um sintoma, mesmo que seja um sintoma muito forte, muito importante de uma desconexão imaginária com a própria potência. De uma maneira tal que não se vê mais, não se vislumbra mais nenhum horizonte. Pois bem, é exatamente aqui que está uma espécie de ponto de mutação ou de foco que pode transmutar o nosso modo de desejar. E esse foco significa esgotar o campo de possibilidades. Deleuze, em um texto dedicado à obra de Samuel Beckett, vai fazer a distinção, na própria obra de Beckett, entre o cansado e o esgotado. O cansado é o depressivo, o que cai na mais profunda depressão. Há um cansaço e um grande cansaço. Mas, por exemplo, Nietzsche, no seu Zaratustra, que eu já citei aqui, inclusive, no primeiro fragmento do primeiro livro, na primeira parte do Zaratustra, que vem logo após o prólogo, ele vai fazer a distinção entre três metamorfoses do espírito ou do pensamento. O pensamento ou espírito que se torna camelo, o pensamento ou espírito que se torna leão, e o pensamento ou espírito que se torna criança.

O pensamento que se torna camelo é aquele que carrega realidades prontas, que acredita no que está pronto, que acha que a realidade é incriada — assim como Platão acreditava que o ideal era um modelo pronto e que não havia o que fazer, exceto descobrir as suas estruturas internas, intrínsecas, para imitar um espírito, introjetar as suas relações intrínsecas, e fazer de si uma imagem-ícone, com o máximo de semelhança a esse modelo.

Mas de onde vem isso tudo? Eu dizia, há uns momentos, que nós projetamos os nossos estados vividos, que são estados, sob certo ponto de vista, bem-sucedidos. De que ponto de vista? Da sobrevivência, porque somos sobreviventes. E nós extraímos desses estados uma espécie de identificação com o ser que nos trouxe até aqui. E eliminamos ou abstraímos as imperfeições, e buscamos uma perfeição, excogitamos perfeições que vão nos dar o horizonte. Então, o que é o possível, na verdade, no nosso horizonte? O possível é uma retroprojeção do já vivido.

Quando dizemos que uma coisa é possível, ela funciona mais ou menos da seguinte maneira: quando você quer fazer algo, você investe em alguma coisa, e você conta para alguém isso que você quer fazer, e esse alguém te diz “Ora, isso é impossível”. “Mas por que isso é impossível?”. “Porque nunca existiu isso que você está falando, isso que você quer fazer. É impossível de se fazer isso porque isso só está na sua imaginação, isso não existe”. E aí você percebe que o que as pessoas geralmente chamam de “possível” é algo já realizado ou comprovado, mesmo que desconhecido de muitos de nós. Então haveria já uma forma pronta, uma forma dada. É a crença nos valores prontos. A crença nos valores prontos coincide com isso o que Nietzsche diz do nosso espírito quando se torna camelo. O nosso pensamento acredita que há uma realidade pronta, há um domínio do possível já dado, e que o melhor que temos a fazer é reconhecer esse ser já dado, já conhecido uma vez, antes de encarnarmos ou antes de incorporarmos na existência.

Platão tem essa crença de que antes de incorporarmos, nós tivemos relações com esses modelos ou com essas ideias. Esse campo do possível coincide exatamente com esse plano platônico de ideal, mas isso opera no nosso modo de vida. Nós excogitamos o possível. Nós investimos nesse possível dado e, portanto, acreditamos que, enquanto investimos nesse possível, estamos buscando o sucesso, a superação, o melhoramento da vida. Mas o que nós temos em troca? Frustrações. Pequenas ou grandes frustrações, e vamos colhendo esses desgostos, essas pequenas mortes, seja no modo semiótico, no modo como usamos a linguagem a partir das pequenas sentenças de morte, seja nas mortes dos nossos movimentos, na desintensificação dos movimentos do corpo, e na desintensificação do nosso campo afetivo.

Nós vamos colhendo. A nossa colheita é de imagens mortas, imagens opacas, signos que na verdade não têm horizonte, e buracos. Vamos nos preenchendo e entupindo com isso. Nosso corpo vai ficando esburacado, o nosso corpo sem órgãos vai ficando tão esburacado que uma hora não tem mais onde esburacar. O que acontece com ele? Ele sente um grande vazio. O que ele sente? Nada. Ele sente o vazio. É um corpo esvaziado. Esse corpo esvaziado é o corpo do depressivo. Mas ele está de fato esvaziado? Na verdade, não. Mas como ele pode imaginar um muro tão grande e intransponível, que ele não consegue mais acessar o seu dentro, a sua zona potencial? Ele só acessa as suas frustrações, a sua zona escura. Ele acessa uma noite. É como se não houvesse nada mais dentro dele, exceto essa noite, exceto esse nada, esse esvaziamento.

Então é aqui que — se quisermos seguir ainda o movimento do próprio Nietzsche em seu Zaratustra, nas três metamorfoses do espírito —, percebemos que é o momento necessário e urgente para que o camelo se torne leão. E o que é o camelo que se torna leão? É o nosso pensamento, a nossa maneira de pensar que deixa de acreditar em ideias prontas. É esse o momento. O momento em que deixamos de investir no já dado, no dado de uma vez por todas. Como se existir não fosse criar. Ora, o leão vai dizer “não”. Não a esse já dado, não à realidade pronta. É necessário que digamos “não” à crença do já dado, para daí conquistar ou investir na potência de criar. O “não” do leão é o “não” às formas prontas, sejam formas ideias, divinas, sejam formas humanas, morais ou racionais, sejam formas naturistas. Essas três formas devem ser destituídas porque, na verdade, nenhuma forma vai apreender a realidade do acontecimento. Toda forma reduz o acontecimento. O acontecimento está diretamente ligado à potência de acontecer. E a potência de acontecer não se fecha em nenhuma forma. Toda potência de acontecer cria uma linha de efetuação singularizante e diferencial de si mesma. E não se encaixa ou quer preencher uma forma ou ser formatada por essa forma. Isso não.

Você deixa de nadificar o acontecimento a partir de uma suposta realidade transcendente e passa a perceber que a nadificação está no ideal, na forma humana e na forma naturistas. Nessas formas de verdade que nadificam o acontecimento, que fazem do acontecimento não uma necessidade, mas um mero acaso, que fazem do acontecimento não uma essência, mas um mero acidente, que fazem do acontecimento não um devir que gera consistência, mas um devir efêmero que se esfarela e se dissolve no ar. Essas ilusões são dadas pelo investimento nas formas de idealidade divina, idealidade humana ou idealidade naturista.

Aqui entra um operador fundamental, que nós já citamos aqui inclusive uma pequena obra de Herman Melville, chamada Bartleby, o escriturário, cujo personagem inventa um tipo de enunciado: “Prefiro não”. Já vamos falar um pouco disso. Esse “não” é não às demandas, é não a essa verdade das alturas, é não a essa verdade racional humana, é não a esse modo dado, orgânico, do corpo, porque esse “não” nos coloca novamente em contato com uma zona de passagem na qual nada está determinado. É uma zona de indeterminação que resiste a tudo que está determinado, que se acredita determinado ou que se pretende determinado. Nós não somos determinados a partir de uma necessidade exterior a nós mesmos. A nossa determinação é uma determinação intrínseca, que vem da necessidade de efetuação. Mas nenhuma forma verdadeira no horizonte da efetuação está dada. Nós somos uma linha de variação e de acontecimento. Nós temos que criar esse circuito de efetuação da nossa potência que diferencia a nossa potência. Um desejo intensivo. É isso que nós precisamos fazer.

Esse “não” do leão faz com que você crie as condições da própria condição de realidade. Ou seja, você deixa de investir o plano do possível como um possível dado, porque agora você passa a se relacionar com uma zona de indeterminação que está exatamente na passagem de qualquer existência. Toda vida está acoplada a essa existência, a essa zona de passagem. Como os astrofísicos denominam um buraco negro, por exemplo. É uma zona de eventos. Há uma zona de eventos de todo o existente. Todos nós somos envolvidos por uma zona de eventos. E além ou aquém dessa zona de eventos, o desejo muda de natureza.

Há uma zona de eventos e essa zona de eventos é também uma zona de indeterminação. Mas é justamente aí que a potência se diferencia, faz a diferença na existência, porque ela deixa de ser só potência virtual e passa a ser uma existência atual. Uma diferença na existência, ela se diferencia dela mesma. Esse ponto é fundamental. E quando ela se diferencia dela mesma, ela está criando realidade, e não constatando uma verdade pronta. Ela está criando ou inventando aquilo que preenche o corpo sem órgãos, o corpo de potência. Preenche esse corpo de intensidades. A intensidade é o próprio efeito da diferenciação da potência, que gera mais potência. E o que é a intensificação da potência? É um aumento de realidade que faz com que essa potência se apreenda ainda mais real do que era, e apreenda mais realidade com a qual ela está em relação.

Aqui você cria o movimento de um corpo pleno, que deixa de investir o possível, que não se cansa de tanto investir o possível, mas agora, deliberadamente, esgota o possível. Vai investir no esgotamento do possível e, ao investir no esgotamento do possível, conquista uma realidade que estava soterrada, que estava encoberta, que estava sem acesso. Cria o acesso para que a nossa vida entre em devir, para que a nossa vida se diferencie. E é justamente a reconexão com a realidade virtual. Não há existente que não seja atravessado por essa realidade virtual. Essa realidade está disponível a todos nós, mas nós não temos acesso a ela, e por quê? Porque o nosso modo de vida inviabiliza isso. E mais: não é apenas o nosso modo de vida, é toda a máquina social que investe em um modo de vida rebaixado, sem o qual não haveria a reprodução dos seus poderes, não haveria o atendimento a demandas, nosso desejo não seria capturado.

Não só, muitas vezes, nós existimos de um modo a dar tiro no próprio pé, ou seja, nós desejamos de uma maneira tal que fazemos mal a nós mesmos, nos rebaixamos, como tem também uma máquina social incentivando isso, sobrecodificando, sobreinvestindo, na verdade, esse modo de desejar. E criando, de outro lado, recompensas. Ela esconde esse sobreinvestimento na nossa decadência, no nosso rebaixamento, mas ela mostra muito, ilumina muito, torna muito visível e reconhecível a zona de empoderamento, a zona de satisfação, a zona de compensação. E para quem é mais honesto, como o depressivo — há uma honestidade profunda no depressivo, ele simplesmente não se deixa enganar, ele não quer se deixar enganar, ele prefere viver intensamente (se é que dá para falar assim, é até um paradoxo) essa nadificação de si, mas isso, na verdade, é uma condição para ele entrar no movimento afirmativo, para ele descobrir esse horizonte de eventos da vida dele, que o põe novamente investindo nessa indeterminação dos movimentos, nessa indiscernibilidade das verdades, nessa ambiguidade dos afetos, até para que ele possa se pôr em experimentação.

E aqui nós começamos a vislumbrar a saída real, a cura real da depressão. Nós vemos então a grande máquina social investindo no rebaixamento da vida. Mas, claro, ela prefere que a vida funcione de alguma maneira, mas tem vários efeitos colaterais, e um deles é a vida caindo de uma maneira tal que ela não consegue mais funcionar. E aí, claro, a máquina social capitalista se aproveita de tudo. Inclusive, a indústria farmacêutica vai estar aí dando respostas para um diagnóstico também fraudulento, como se a depressão viesse de um problema neurológico, ou de um problema genético, ou de um problema de gerações — ou ao menos enquanto cocausa que ajudaria o depressivo a sofrer carência de substâncias neuronais. E daí a prescrição de antidepressivos, de ansiolíticos, de estabilizadores de humor, de calmantes, de coleiras químicas.

Somos contra isso? Não somos contra nenhuma droga em si mesma, depende do uso que se faz dela. Mas a indústria farmacêutica deveria estar ou ser posta a serviço de uma vida que muitas vezes, em situações críticas, necessita de uma intervenção mais incisiva, inclusive com o uso de substâncias químicas, mas por um tempo mínimo. Apenas para evitar que um surto leve a um risco maior, ponha a própria vida ou a dos outros em risco, mas apenas nesse caso. O investimento fundamental é retomar as potencialidades encobertas dessa vida, porque estão todas lá. O depressivo tem isso disponível para ele, mas ele não tem acesso. Ele está sem esse acesso.

Então o que nós devemos fazer? Nós devemos investir nisso, mas não com terapias cognitivas e comportamentais, ou essas que simplesmente se chafurdam no passado. Sejam essas que se chafurdam no passado e nos traumas, como as psicanálises dominantes, sejam essas cognitivas, comportamentais, que acreditam que apenas o foco na mudança de comportamento ou na substituição de ideias vai fazer a diferença. Mesmo combinado com medicamentos, isso vai mostrar, a longo prazo, a sua ineficiência — exceto se houver um conformismo, uma recooptação daquela vida para atender novamente às demandas da máquina social. Só nesse caso. Mas, na verdade, isso não funciona.

O que funciona é retomarmos a nossa potência de pensar, a nossa potência de sentir, a nossa potência de criar distâncias e fazer conexões. E eu diria que o começo de um dispositivo fundamental a ser instalado, a ser investido aqui, é um “não”, é aprender a dizer não a tudo que rebaixa a vida, a tudo que torna a vida refém de alguma coisa. Esse “prefiro não”, assim como vimos na obra do Melville, com o personagem Bartleby, esse escriturário que resolve dizer “não”. O “não” é o começo, mas ele é insuficiente, obviamente. Não basta você dizer “não”. É dizer “não” àquilo que sabota a sua energia, “não” àquilo que captura o seu desejo, “não” àquilo que te rebaixa, “não” àquilo que te torna função, “não” àquilo que indisponibiliza o tempo próprio do seu desejo.

“Não”, justamente para que você possa disponibilizar todo o tempo para si mesmo, reencontrar o seu tempo próprio, reencontrar os movimentos intensivos do corpo, reencontrar o horizonte afirmativo do pensamento. Isso é uma condição sine qua non. Você não entra em acontecimento sem isso. Você não retoma a potência de acontecer sem isso. Você não cria a distância entre o acontecido e a potência de acontecer, e sem essa distância não há como novamente a zona potencial de você mesmo subir novamente à superfície, encontrar novamente o seu horizonte de eventos, a sua zona de passagem. Isso é essencial.

Mas o que acontece, uma vez que somos capazes de sustentar esse “não”? Acontece que nós começamos a criar operadores, quer dizer, investir em operações que vão disponibilizar de uma maneira tal de variar o tempo, o movimento e o nosso campo afetivo, que vai gerar um meio de experimentação. A experimentação é fundamental. Vai nos pôr em posição de espreita.

Aqui tem uma virada: quando você conquista a espreita e a potência de espreitar. Mas nós não tínhamos essa potência de espreitar? O que nós somos, senão também animais? Nós perdemos nossa animalidade? Nós somos animais. E a nossa animalidade é uma das forças mais importantes, e deveria novamente se tornar dominante em nós. O devir-animal, reconquistar a nossa dimensão animal significa se tornar bestial, em um sentido negativo? Selvagem e grosseiro? Ameaçador da civilidade? De modo algum. O animal não é isso. Essa é a imagem que os humanos decadentes fizeram dos animais. A animalidade em nós é fundamental. Nós temos que recobrar nossa potencialidade animal, nossos devires animais. Isso é fundamental.

E o primeiro aspecto que salta em um animal é a sua potência de espreitar. O animal é aquele que sempre está em um ponto tal que pode ser comido e ao mesmo tempo precisar comer. Isso exige dele uma qualidade tal de presença, sem a qual a vida dele está o tempo inteiro em risco e ele não vai longe. É preciso desenvolver muito a presença. Então espreitar é ter outro tipo de presença. Não é a presença do cabeção, não é a presença do Eu, não é a presença dessa consciência humana que é sempre retardada, não é essa que é sempre cheia de fantasmas, de signos, de afecções que são rastros, restos de desejo. Não é com essa presença. Essa presença dos signos, dos restos, das afecções, é o que nos torna ausentes de nossa potência de acontecer.

Muito ao contrário, a espreita animal devolve a presença de entrar em acontecimento. E essa espreita animal implica uma espécie de imobilidade, principalmente nos deslocamentos. Vocês já observaram algum animal à espreita? Muitas vezes ele está lá absolutamente imóvel. Como uma aranha tece a sua teia, capturando ou apreendendo os movimentos da mosca? Ela apreende o código do ziguezague da mosca e, com essa apreensão, ela cria a medida através da qual a sua teia vira um meio de alimentação.  Isso vem de uma espreita. Vem dessa potência animal. Como diz Deleuze, “Não se mexer muito para não espantar os devires”. A espreita implica uma espécie de imobilidade na qual o nosso corpo entra também em uma espécie de velocidade absoluta. Quanto mais imóvel nos tornamos, mais velozes a nossa percepção, os nossos afetos e o nosso pensamento.

Mas junto com esse devir animal há também algo extremamente interessante, que nós sequer suspeitamos e sempre desqualificamos, que é o nosso devir vegetal. Existem forças em nós… Nós somos filhos do vegetal e coexistimos com o vegetal. O vegetal é um modo da vida. E toda vida é um modo da potência. A vida, que é um modo da potência, se diferencia em vegetal, em animal, em intelectual, em intuitivo. Já dizia aquela obra que eu até citei para vocês na bibliografia de estudos, A evolução criadora, de Bergson. Bergson vai dizer que há um impulso vital que se diferencia em vegetal, que acumula energia; em animal, que faz explodir essa energia; em intelectual, que organiza o mundo; em intuitivo, que apreende o tempo e a duração.

Nós temos muitas zonas de acontecimento em nós. Apreender novamente o vegetal é fundamental. Estar em estado vegetativo nos faria mal? Por que o depressivo precisa levantar da cama, ou se pôr em movimento, ou fazer certas coisas? Muitas vezes, poderia se afirmar esse momento, até o corpo não aguentar mais aquela posição, e ele mesmo se autoexpulsar daquela posição.

Então, espreitar, se dar o direito à experiência, à apreensão do tempo próprio, à afirmação dos movimentos intensivos sutis, que não são valorizados socialmente, pois não têm determinações sem as quais nós não seríamos reconhecidos. Valorizar esses aspectos é fundamental. E a espreita nos devolveria o quê, na verdade? A experiência da duração. E é na duração que nós conquistamos aquilo que há de mais valioso, que é o tempo próprio ou a potência de criar tempo, a potência de dilatar o tempo, assim como a potência de criar lugar. E é aí, criando tempo e criando lugar, que nós também criamos maneiras de acontecer, maneiras de existir. Criamos mundo e nós próprios. E é aí que nós ligamos a vida novamente à sua potência de acontecer, criando realidade e não buscando preenchimentos já dados ou prontos, que nunca vão acontecer.

Na verdade, não existe maior antidepressivo, não existe ansiolítico mais potente, não existe aquilo que devolve a serenidade da vida mais potente do que o acontecimento. Entrar em acontecimento, é isso que é essencial. Pôr a vida novamente em acontecimento. Mas por que saímos  dessa zona de acontecimento? Porque nós, ao mesmo tempo em que íamos confundindo a nossa potência de acontecer com o acontecido em nós, a sociedade, a máquina social, o conjunto de desejo e crença das redes de sociabilidade que nos envolve, investia nessa colagem, nessa redução do acontecido com a potência de acontecer, a potência de acontecer reduzida a esse acontecido. Esse duplo circuito vicioso do nosso modo de vida rebaixado, buscando empoderamento, e de uma máquina social investindo no rebaixamento e gerando uma falsa potencialização ou empoderamento. Então, romper com esse aspecto é não só romper com nosso mau jeito diante da existência, é fazer um outro uso, um uso interessante daquilo que nos acontece, de bom e de mal, como também deixar de esperar o que a sociedade, a civilização e uma época nos oferecem.

Assim como para uma criança ou para um adolescente se pergunta “O que você vai ser quando crescer?”. O que existe aí nesse horizonte social, o que a sociedade promete, o que ela oferece para você ser? Você quer ser um advogado, um médico, um empresário? Você quer ser aquilo que vai te dar poder e salvação, felicidade, direito a gozo? Na verdade, então, nós desinvestimos o campo de possibilidades. E, ao desinvestir esse campo de possibilidades, nós ganhamos todo o tempo de investimento na nossa duração, na experimentação. Afirmamos uma zona de experimentação.

Aqui está o essencial. Como diz Nietzsche, “Aquele que está perdido para o mundo pode ganhar o seu mundo próprio”. O seu mundo próprio que também não é mundo de um Eu ou de um indivíduo. É um mundo que é também comunal, mas não o comum ordinário. O comunal que está diretamente acoplado à sua zona de eventos. Assim como observa e afirma o acoplamento das outras vidas às suas próprias zonas de eventos. E aí cria um grande plano comunal de acontecimento. Quanto mais investe esse comunal, mais se singulariza. Quanto mais se singulariza, mais é capaz de alargar e ampliar o comunal, como uma abertura para novos futuros, novos direitos a novos futuros, criando memória de futuro. É uma maneira completamente distinta.

Como diz Nietzsche no seu Ecce Homo, “Quando eu me tornava otimista, a minha energia vital caía em um limiar péssimo. Mas quando eu desinvestia esse otimismo, me tornava absolutamente pessimista…”. E aí você pode dizer assim, “Pessimista em relação a quê?”. Em relação a esse campo do possível, que no fundo só gera mais frustração. Quando ele desinvestia o campo de possibilidade dado, oferecido por esta nossa época, por esta humanidade que chegou até aqui deste jeito que chegou, este modo torto, ele ascendia, se tornava extremamente vital. O nível de energia dele ia a um limiar ótimo. Então, do limiar péssimo com o otimismo ao limiar ótimo com o pessimismo. O que era esse pessimismo, no fundo? Era o pessimismo em relação a essas supostas verdades ou idealidades humanas. Isso devolvia a ele toda a potência de experimentação e de criação de novos futuros, de novos devires, se tornando o quê, exatamente? Uma potência ainda mais inesperada, inusitada e surpreendente para si mesmo de acontecer. Se tornando o que se é de direito, à medida em que, de direito, nós somos uma potência de criar realidade. Mais do que uma potência de acontecer, somos uma potência de criar realidade.

E, ultrapassando o fato da decadência humana, que era exatamente os das potências separadas — não só de acontecimento, como de criar realidade, aqui a vida novamente é resgatada. Então não há outra maneira de enfocar de modo pleno a questão da depressão — não só a depressão, como o que a acompanha, ou mesmo os movimentos maníaco-depressivos do desejo, as manias, os seus estados de ansiedade e tudo que daí deriva —, senão percebendo esse horizonte de uma máquina social que tem interesse em manter a vida em estado desintensificado, exatamente para fazer dela refém e função de uma máquina social. E nós achamos que, incorporando as suas benesses, a sua raçãozinha diária, nós estaríamos, na verdade, ganhando alguma coisa. Como, por exemplo, quando as psicoterapias te levam a falar em nome próprio e a dizer “Eu”, você acha que ganhou grande coisa. Quando você falou “Eu”, você está diminuindo, rebaixando, se separando da sua mais plena singularidade, do seu mais pleno potencial de se diferenciar e criar realidade na existência.

Bom, gente, é isso. Este é um curso introdutório. Nós chegamos ao nosso quarto encontro, à nossa quarta aula. Eu espero que tenha sido de proveito para vocês. Claro que eu vou depois olhar novamente o chat, vou olhar as manifestações, que são muito carinhosas e muito ricas. Eu tenho lido. Quero dizer para vocês que eu tenho lido o chat. Sempre a posteriori, claro. Mas, agora, como vamos fazer o nosso último encontro, eu vou também, além de contemplar as questões mais essenciais — eu imagino que muitas foram já contempladas com este meu modo de expor o pensamento —, mas além de contemplar algumas das questões essenciais que não foram contempladas aqui, nós vamos também apresentar um programa de aprofundamento em todas essas questões, que é um curso de longa duração, um curso de dois anos, de formação em Esquizoanálise.

Então, para aqueles que têm interesse, que quiserem ir mais além, estudar e experimentar com forças aliadas, e seguindo o método que eu vou expor no nosso próximo encontro, vai ser imprescindível então assistir a esse quinto e último encontro.

De novo, eu acho muito importante, aqueles que seguem aqui com toda a sua atenção, seu desejo de investir esse pensamento, ver ou rever as aulas. Se tem alguém aqui que está vendo pela primeira vez, veja as aulas anteriores, e quem já assistiu pode revisitar, que é sempre bom. Nunca é demais, à medida em que a cada movimento você vai descobrindo novas camadas do pensamento e do corpo.

Tá bom, gente? Então agradeço demais a presença de vocês, e espero vê-los, vai ser uma alegria vê-los, vê-las aqui no nosso próximo encontro, no dia 17 de julho, às 19 horas.

Grande abraço, beijos para todos e todas, e até o nosso próximo encontro.

Transcrição por Gabriel Naldi